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25/09/2007 | PODER JUDICIÁRIO LATINO-AMERICANO E BANCO MUNDIAL

Poder Judiciário Latino-Americano e Banco Mundial

1 Introdução

O estudo interdisciplinar possibilita o restabelecimento da íntima ligação entre os âmbitos do conhecimento humano e, sobretudo, amplia as possibilidades de aplicação prática desse conhecimento. Apoiados nessa premissa propomos uma análise sobre a mútua influência entre o Direito e a Economia e uma reflexão do papel institucional do Poder Judiciário frente aos desafios da globalização econômica, considerando as ponderações do Banco Mundial, veiculadas no documento técnico 319.

Primeiramente, cumpre-nos estabelecer um vínculo semântico da terminologia adotada, tendo em vista que a maioria dos vocábulos a serem empregados tem mais de um sentido, o que poderia trazer confusão à nossa análise.

Dessa forma, o Direito significa o sistema de regramento substitutivo à autotutela, consagrador do Estado moderno e pacificador social. A Economia, a ciência que estuda a produção, a distribuição, a circulação, o consumo, o equilíbrio e a expansão da riqueza. O objetivo do Direito é regular a sociedade por meio de normas abstratas e sanções, enquanto a Economia objetiva o alcance máximo de resultados lucrativos com o mínimo de esforço ou custo. Cada área com sua projeção peculiar sobre a realidade das interações sociais.

O Poder Judiciário é um dos poderes estruturais do Estado e está na base de constituição da soberania e da democracia.

A globalização econômica, por seu turno, pode ser entendida de forma tridimensional:

a) sob o aspecto expansionista, significando a solução dos problemas sócio-econômicos ainda não proporcionada no decurso da história, presumindo-se que as técnicas informacionais estão ao alcance de todos, unificam o pensamento humano e rompem as barreiras do Estado, enquanto o comércio livre gera o bem-estar social. Aqui se encaixa a visão dos “hiperglobalistas”, como Ohamae e Cox, que vêem no fator econômico a fonte de progresso e na soberania compartilhada a substituição para o modelo estatal vigente (ou seja, o fim do Estado-Nação). O Judiciário, para essa corrente, é considerado elemento de resistência ao estabelecimento desse novo modelo emergente;

b) sob o aspecto maléfico, representando um agravamento de situações de desigualdade e exclusão social, provocando desemprego crescente, aumento da pobreza, competitividade exacerbada em todos os âmbitos, bem-estar efetivo para uma minoria e revelando-se uma repetição de maior gravidade de outros momentos históricos. Sob essa ótica, os “céticos”, como Hirst e Thompson, vislumbram a globalização como mito, um subproduto da ordem mundial criado pelos Estados Unidos após a II Guerra, que depende da liberalização econômica de cada Estado mediante o afrouxamento regulatório, utilizando-se da penetração nas instituições que são “fontes e esferas de poder” para atingir seus objetivos;

c) sob o aspecto de um ciclo em andamento, que ainda não atingiu o seu estágio de maturidade na dialética social, mas que pode chegar a resultados positivos se os atores sociais diversificados considerarem dados da história concreta para uma globalização mais humana, com a utilização das técnicas informacionais já existentes. Essa visão está relacionada à concepção “transformacionista”, que vê a globalização como uma construção social de longo prazo, com contradições e exclusões, que convida a uma ressignificação do Estado e de suas instituições.

O Banco Mundial, por sua vez, é um organismo internacional concebido em 1944, na conferência de Bretton Woods, com o fim precípuo de auxiliar na reconstrução da Europa após a II Guerra Mundial e atualmente tem a meta de reduzir a pobreza dos países em desenvolvimento. Foi criado juntamente com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que a princípio regulava as taxas de câmbio mundiais, e hoje tem por escopo a concessão de empréstimos, o estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada e a assessoria técnica aos governos e empresas, com a elaboração de planos de austeridade. A partir de 1947 o Banco Mundial passou a ser organismo especializado da Organização das Nações Unidas (ONU), mediante acordo entre o Conselho de Governadores do Banco Mundial e a Assembléia Geral da ONU. Essa configuração confere ao Banco Mundial um destacado papel na governança mundial que, com base em estudos empíricos, emite recomendações normativas na ordem internacional e impõe, sem força coercitiva explícita, mas mediante mecanismos de recompensas e punições, o padrão hegemônico de funcionamento da economia e das instituições. Estas, analisadas sempre sob a ótica de funcionamento do mercado. Mas é o Estado, na governança local, que vai conferir eficácia ao padrão financeiro e ao modelo institucional no âmbito interno.

O Documento Técnico Número 319 é um estudo acerca do setor judiciário na América Latina e no Caribe, produzido nos EUA e publicado em julho de 1996, elaborado por Maria Dakolias, especialista no setor judiciário da divisão do setor privado e público de modernização, no intuito de proceder a um levantamento de elementos para a reforma. Inicialmente o documento menciona a crise institucional do Poder Judiciário, apontando posteriormente alguns valores necessários para a superação dessa crise, tais como: ampliação do acesso à justiça (adoção de meios alternativos de solução de conflitos), credibilidade (combate à corrupção), eficiência, transparência, independência, previsibilidade, proteção à propriedade privada e respeito aos contratos. Sem a adoção desses valores mediante uma reforma institucional e criação de padrões internacionais, segundo o relatório, não há ambiente propício ao crescimento da integração econômica entre países e regiões, ou seja, os países latino-americanos não possuem aptidão para uma adequada inserção na economia globalizada. Por isso o próprio Banco Mundial atua como parceiro dos países que decidem implementar as reformas sugeridas.

2 Paradoxos e Desafios

Provavelmente o aspecto mais importante que se pode vislumbrar com o estudo do Banco Mundial é a estreita ligação entre as práticas do mercado e o apoio institucional do Estado e dos Poderes de Estado. Não há globalização sem um Estado forte e sem instituições sólidas, por mais paradoxal que isso pareça. Por outro lado, não há Estado forte sem inserção no modelo econômico vigente, que envolve o fluxo contínuo e crescente de importação e exportação, ou seja, o estreitamento das relações comerciais entre a iniciativa privada dos países e os próprios países.

As modificações dos modos de produção e consumo estão na gênese de formação e alteração dos modelos de Estado.

Já experimentamos, ao longo da história, alterações no modo de produção, acompanhadas de alterações na ocupação geográfica do território, seguidas de modificações legislativas decorrentes de novas interações sociais e modificações no Estado, enquanto instituição, e nas instituições, enquanto expressão do poder estatal.

Então, o que há inovador nesse novo momento que denominamos globalização? Quais são as racionalidades que se entrechocam na implementação sistemática e por que motivos? E qual é dimensão do regramento jurídico e do Poder Judiciário nesse momento?

Não é possível arriscarmos respostas sem uma reflexão que inclua a antropologia, a sociologia e a história como ciências importantes e interligadas na construção do tecido social onde se insere o desenvolvimento econômico e as instituições jurídicas.

Na obra “A morosidade no Poder Judiciário e seus reflexos econômicos” as reflexões antropológicas de ARMAND deram sustentação para o argumento de que há causas atávicas determinantes da forma como o desenvolvimento alcança certas regiões do planeta, ligadas a fatores climáticos influentes sobre a escassez e a previsibilidade, que agregou na cultura de cada povo uma forma peculiar de comportamento produtivo.

Essa análise é compatível com o que sustenta NORTH, Prêmio Nobel de Economia em 1993, nos EUA, que observa que a disparidade desenvolvimentista entre os EUA e a América Latina ocorreu devido a questões de colonização. Para ele, o fato da América do Norte ter sido colonizada pelos britânicos foi determinante para que os EUA pudesse utilizar-se do modelo de direitos de propriedade e de progresso industrial da Grã-Bretanha, bem como do apoio financeiro quase irrestrito, com certa dose autonomia política e econômica, que conferiu solidez às instituições e possibilitou uma independência igualmente sólida. O mesmo não ocorreu com os países da América Latina, colonizados pela Espanha e Portugal, que basearam sua ação colonizadora no extrativismo das riquezas, tendo por base uma estrutura de monopólio econômico e controle político, sem dar apoio financeiro e conferir autonomia institucional aos colonizados. A América Latina, diferentemente dos EUA, inicia sua independência com governos relativamente autônomos e guerras civis e experimenta a ditadura militar, enquanto os EUA já partem para uma experiência econômica, institucional e democrática diferenciada.

O Dr. Gonzalo Anes y Álvarez de Castrillón, que ganhou em 2006 o Prêmio de Economia Rey Juan Carlos, instituído pela Fundação José Celma Prieto, na Espanha, atribui o atraso da América Latina em relação aos Estados Unidos, no que se refere ao desenvolvimento econômico, à forma como esses países tornaram-se independentes, asseverando que não conseguiram obter um regime parlamentar estável e instituições que dessem segurança ao cumprimento dos contratos celebrados e à propriedade privada.

Podemos perceber que o raciocínio seguido por Dakolias, por Douglas e North e por Castrillón divergem em relação às causas que tornam a América Latina institucionalmente insegura para investimentos, mas são convergentes em relação às conseqüências, apontando principalmente para o fato de que a base institucional é o lastro sobre o qual uma experiência bem sucedida de democracia e de desenvolvimento econômico são solidamente construídas.

Como esses argumentos são recebidos pelos países latino-americanos? É possível aderirmos aos modelos norte-americanos sem considerarmos os aspectos históricos que estão mapeando a trajetória institucional da América Latina? Seria esse o único caminho viável para o fortalecimento do Estado e dos seus Poderes?

Sem desconsiderarmos a validade, nem desprezarmos a importante lógica que norteia o raciocínio desses pensadores, devemos ponderar que se trata de uma racionalidade dominante que tem por característica considerar apenas uma via para o objetivo econômico de alcance máximo de resultados com o mínimo de esforço ou custo. Talvez os problemas estruturais da América Latina exijam uma transposição das fronteiras do lucro, a fim de que ele possa gerar efetiva qualidade de vida e aprimorar de fato a experiência democrática e institucional que hoje traz insegurança aos investidores. Essa redução da margem de riscos, com a garantia dos contratos, do direito de propriedade e o proferimento de decisões não politizadas pelo Judiciário esbarram justamente na perspectiva de justiça, independência e equilíbrio social que os magistrados procuram imprimir em suas decisões. Forma-se, assim, o paradoxo: o ambiente institucional é inseguro para investimentos, por um lado; enquanto, por outro, o Poder Judiciário luta incansavelmente para minimizar os efeitos nefastos do lucro mal distribuído. A superação desse impasse é o desfio da modernidade não só para os países em desenvolvimento. A propalada auto-ajustabilidade da economia na produção do bem estar geral e irrestrito tem um aspecto mitológico que precisa ser desvendado.

Muitos países latino-americanos estão extremamente preocupados com o Poder Judiciário, colocando-o numa pauta de discussões séria, com reformas em andamento e mudanças significativas já adotadas, que demonstram uma capacidade de reação positiva e construtiva às críticas e, mais ainda, uma unidade que surge de uma construção histórica diferente da norte-americana que valoriza a vivência experiencial de outros países e continentes, mas não a torna um modelo determinante a ser seguido às cegas. Enfim, temos a liberdade de aprimorar o Poder Judiciário, aproveitando-nos da nossa vivência institucional, da existência e importância de padrões internacionalmente recomendados e também da necessidade de valores locais a serem mantidos, a fim de que as mazelas da máxima do lucro a qualquer custo não se propaguem indefinidamente no nosso futuro.

O impasse institucional da América Latina para expansão dos mercados, pois, tem o mérito de trazer ao cenário mundial o debate e talvez a retomada da ética nas relações econômicas, princípio de uma nova racionalidade jurídico-institucional centrada no efetivo bem estar do ser humano.