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18/11/2008 | O VÉIO DO SACO

O VÉIO DO SACO

Não é de hoje. Já faz algum tempo que venho sentindo estes sintomas. Lembro de coisas cada vez mais longínquas e não recordo o que fiz ontem. Talvez seja sinal da decrepitude que sorrateiramente em mim se instala.
Nestes dias lembrei do Véio do Saco, uma figura monstruosa criada pelos adultos para assustar as crianças que não comiam, não obedeciam, não estudavam. “Se continuar desse jeito eu te entrego pro Véio do Saco”, diziam os pais dos meninos (principalmente meninos), contemporâneos a mim. Tremíamos de medo. Qualquer velho mau cuidado, barbudo, que andasse com algum saco (por ironia, todo mendigo barbudo que passava pela rua, levava consigo um saco, aonde cabiam todos os seus pertences) era o Véio do Saco. Corríamos dele em desespero, entrávamos em casa, lavávamos as mãos, repetíamos o almoço (inclusive a salada e os legumes), íamos para a escola e à noite ainda fazíamos as tarefas de casa. Só assim, não seriamos entregues ao Véio, que já levava alguns meninos terríveis no seu saco. Só não sei se o Véio tinha consciência do bem que fazia aos pais dos meninos. Acho que não, pois nunca soube que cobrassem pelos bons serviços prestados.
O tempo passou, os meninos cresceram e viraram pais. A rua onde brincávamos passou a ser uma figura virtual aos meninos de hoje. Eles só a vêem através das janelas dos seus apartamentos e dos carros. Brincar só no parquinho do condomínio, ou no computador.
Até pensei que a figura do Véio do Saco também havia desaparecido, por falta de demanda ou por falta de velhos que transitem por aí. Os pais têm outras formas de fazer com que seus filhos cumpram as suas obrigações com muito mais efetividade (moratória de mesada, interdição da internet, proscrição de shoppings, etc).
Mas eu acho que estava enganado. Pelo que tenho visto, os Véios continuam existindo. Apenas se transmutaram, adquiriram novas feições, modernizaram-se, afinal. Talvez não sejam mais tão velhos. Talvez sejam homens, até jovens. Quem sabe, mulheres. Não levam mais os sacos às costas. O termo saco hoje faz mais sentido se o empregarmos naquela denominação pejorativa que todos conhecemos. Ou se o substituirmos por mala, onde enfiam seus troféus violentados e os abandonam em lugares movimentados, como se o perigo de serem flagrados fosse uma excitação a mais, após todo o êxtase atingido com as suas práticas doentias. Mandam mensagens. Marcam encontros. É possível que conheçamos alguns. É possível até que façam parte do nosso convívio. Algumas vezes são pais, mães, padrastos, madrastas, amigos. Quando as vítimas são adolescentes, os Veios podem ser os ex-namorados. Eles não são exclusivamente mendigos, pobres. Alguns enriqueceram muito. Pertencem a todas as classes sociais. Eles estão mimetizados com a sociedade. Não se diferenciam mais. Parecem conosco. E é isto que assusta. O medo do Véio, hoje, passou a ser nosso, dos adultos.
Não existe muita defesa. Não temos como prender nossos filhos. Eles também são filhos do mundo, e terão que conviver com tudo o que o mundo lhes oferece. Podemos transmitir cuidados básicos, instituir alguma proibição, conversar, mas sempre com o risco de sermos considerados chatos. Pode ser a vingança do Véio. Aquela cobrança que eu havia sugerido no começo, lembra? Tô com saudade do Véio da minha infância...
Um dia desses, eu estava batendo papo com o meu filho, com a televisão ligada. De repente mostraram um resumo (compacto?, melhores momentos?), de todas as atrocidades cometidas contra crianças e adolescentes nos últimos meses. Paramos de conversar. Não propus mudar de canal, nem que deixássemos a sala (até para que ele não me perguntasse o motivo). Pouco depois o observei. Estava olhando fixamente para a TV. Foi assim até o final da matéria. Não disse palavra (coisa muito rara). Em seguida, o ajudei a escovar os dentes, esperei que fizesse xixi, e o levei até a cama. Dei um beijo de boa noite e fui fazer outras coisas. Não demorou muito escutei sua voz me chamando: “Papai, liga a cerca elétrica”. Chorei em silêncio...